21 de novembro 2014
Povos indígenas do Brasil e da Colômbia compartilham experiências e desafios no Alto Rio Negro (AM)
Entre os dias 3 e 10 de novembro foi realizada na comunidade São Pedro, Alto Rio Tiquié, Terra Indígena Alto Rio Negro/AM, a V Canoita, encontro entre diversos povos, comunidades e associações indígenas do noroeste amazônico, tanto do lado brasileiro quanto do lado colombiano.
A Canoita vem ocorrendo há mais de dez anos no âmbito da rede Canoa (Cooperação e Aliança no Noroeste Amazônico) (saiba mais e aqui). O objetivo é promover o intercâmbio de conhecimentos e de rituais entre os povos que vivem e compartilham um vasto território. Além da troca de informações sobre iniciativas desenvolvidas pelas diversas associações e comunidades, o encontro visa discutir estratégias e propostas para a proteção e governança dos territórios indígenas do noroeste amazônico. O evento teve o apoio e a participação de pesquisadores/assessores do Instituto Socioambiental (ISA) e da Fundación Gaia Amazonas, da Colômbia.
Desta vez, os temas foram as pesquisas interculturais e a gestão territorial, com a participação de cerca de 150 lideranças e pesquisadores indígenas dos rios Uaupés, Tiquié, Pirá-Paraná e Apapóris, falantes das línguas tuyuka, tukano, bará, makuna, letuama, tatuyo, eduria, yeba masã, barasana, kotiria e kubeo. Esses povos fazem parte de um vasto território sociocultural que se estende pelas bacias dos rios Negro e Japurá/Caquetá.
Três Associações de Autoridades Tradicionais Indígenas (Aatis) da Colômbia estiveram presentes no encontro: Acaipi (Asociación de Autoridades Tradicionales Indígenas del Pirá Paraná), Aciya (Asociación de Capitanes Indígenas del Yaigojé Apapóris) e Aatizot (Asociación de Autoridades Tradicionales Indígenas de la zona Tiquié). Reconhecidas pela legislação colombiana como entidades públicas estas associações apresentaram os projetos e iniciativas que vêm desenvolvendo já há mais de uma década para a consolidação de seus Plano de Vida e proteção de seus territórios frente às pressões e ameaças provenientes da mineração e também das transformações decorrentes do longo e conflituoso processo de contato com a sociedade nacional. (saiba mais aqui e aqui).
Do mesmo modo, as associações indígenas do lado brasileiro, como seus grupos de Aimas (Agentes Indígenas de Manejo Ambiental) do Rio Tiquié e do Baixo e Alto Rio Uaupés, apresentaram os trabalhos, pesquisas e propostas que vêm desenvolvendo em temas variados relacionados aos saberes tradicionais e ao manejo e gestão de seus territórios (saiba mais).
Desafios para a gestão e proteção dos territórios indígenas do noroeste amazônico
Calendário ecológico-ritual, sítios sagrados, peixes e pesca, benzimentos de cura e proteção, frutas, roças e cartografia cultural foram alguns dos temas tratados com maior ou menor profundidade por todos os grupos participantes. Também estiveram presentes no evento, orientando as discussões temáticas, alguns benzedores e velhos conhecedores (kumua) que há vários anos vêm colaborando com as investigações empreendidas pelos pesquisadores mais jovens. Algumas das noites do encontro foram dedicadas a conversas e troca de conhecimentos entre os benzedores no que toca às práticas de proteção e cura relacionadas aos ciclos ecológicos e aos sítios sagrados.
No decorrer do evento, todos puderam notar como as iniciativas desenvolvidas nas diferentes regiões do noroeste amazônico possuem diversos pontos em comum. Primeiro que os processos de contato que se desenrolaram dos dois lados da fronteira Brasil-Colômbia foram bastante semelhantes, sobretudo no que toca à violência com que foi conduzido o projeto colonial até pelo menos a década de 1970 do século XX e às profundas transformações daí decorrentes. Assim, as questões e problemas que levaram os diversos grupos e associações do noroeste amazônico a se dedicarem seja à construção de seus planos de vida e de proteção e ordenamento territorial, ou à elaboração de planos de manejo de recursos atrelados à projetos de revitalização cultural e fortalecimento dos conhecimentos tradicionais, dentre outras iniciativas, são em essência bastante semelhantes.
Enfraquecimento dos conhecimentos tradicionais e pouco interesse das novas gerações pelos saberes dos mais velhos; manejo inadequado de recursos naturais e desrespeito aos sítios sagrados; desconhecimento e não cumprimento das práticas rituais relacionadas ao calendário ecológico pelas novas gerações; mudanças climáticas; debilidade das estruturas de governança local; ameaças decorrentes da exploração minerária dentro dos resguardos e territórios indígenas. Estes foram alguns dos principais problemas apontados pelos participantes do encontro, todos eles relacionados com a influência, quase sempre negativa, e muitas vezes impositiva, do mundo dos brancos nos territórios indígenas.
Caminhos e estratégias para enfrentar os problemas
A partir deste diagnóstico geral, os diversos grupos falaram sobre o modo como cada um vem construindo os caminhos e estratégias para lidar com estes problemas. Foram apresentadas desde iniciativas com um acúmulo de mais de dez anos de experiência e construção coletiva, como da Acaipi, Aciya e dos Aimas do Tiquié brasileiro, até processos mais recentes, ainda em fase inicial de construção, como dos Aimas do Baixo Rio Uaupés e dos pesquisadores indígenas e associações do alto Uaupés que estão atualmente empenhados na elaboração de um PGTA (Plano de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas) (saiba mais).
Na avaliação final do encontro, muitos dos participantes ressaltaram que a próxima Canoita será o momento de dar um passo além do intercâmbio de experiências, abrindo espaço para se pensar processos e medidas mais propositivas, com a construção de propostas e recomendações conjuntas para os governos de ambos os países. Dentro desta perspectiva ressaltou-se que em termos da relação com o governo e influência sobre as políticas públicas, as Aatis da Colômbia estão em processo mais avançado do que as associações do lado brasileiro, uma vez que estas contam com um reconhecimento formal do Estado enquanto instâncias de governança pública, algo que não ocorre no Brasil. No entanto, foi lembrado que a nova política para as Terras Indígenas no Brasil, a PNGATI (Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial das Terras Indígenas), instituída em 2012, abre agora a possibilidade para um maior fortalecimento das instâncias indígenas de governança e para uma maior regulamentação da relação dos povos indígenas com o governo.
Outra experiência apontada durante a Canoita como um modelo de diálogo mais propositivo com as políticas públicas voltadas aos territórios indígenas transfronteiriços do noroeste amazônico é a Iniciativa Binacional de Cartografia dos Sítios Sagrados do Noroeste Amazônico, apelidada no Brasil de projeto Mapeo, a qual conta com apoio dos governos brasileiro e colombiano por meio de seus ministérios de Cultura ( saiba mais).
A intenção é que os próximos encontros, articulados com iniciativas já em curso, possam suscitar esforços para a construção de estratégias conjuntas e propostas mais concretas para a proteção do vasto território indígena do noroeste amazônico. E que tais propostas e estratégias sirvam para pressionar os governos dos dois países e cobrar por políticas e compromissos reais capazes de fortalecer os povos indígenas dessa região de fronteira em seus direitos territoriais e culturais.
A Canoita terminou com uma grande cerimônia na maloca tuyuka da comunidade São Pedro, onde os grupos de baya (dançarinos/cantores) do Pirá Paraná, Tiquié e outros participantes dançaram e cantaram por dois dias, acompanhados das entoações cerimoniais dos kumua, xamãs benzedores que trabalham para o manejo do mundo e para equilíbrio da vida.
Fonte: Instituto Socioambiental 18/11/2014